sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Crônica para Simone

por Letícia Bahia


Para Simone de Beauvoir, que hoje faria 107 anos.     



Era mole e quente o cheiro que pesava no ar. Os ventiladores barulhentos não faziam nem cócegas naquele verão sujo de cidade grande. Mais parecia o vento soprado por um dragão com azia. Sofás e poltronas de couro sintético branco acomodavam uma meia dúzia de mulheres que aguardavam a sua vez. Ouviam-se grunhidos, risadas e fofocas que se misturavam às revistas espalhadas pelo sofá. As páginas estampavam risadas e fofocas, mas nenhum grunhido.

Foi sua madrinha quem a levou para sua primeira depilação: "a Solange é ótima, você não vai nem sentir!". A mentira nem lhe passou pela cabeça quando a Solange lhe arrancou os pelos das pernas, das virilhas e a penugem que lhe cobria o buço: dor física se sobrepõe a qualquer pensamento. Entre um respiro e outro a única coisa que lhe ocorria eram as incontáveis vezes em que tinha ouvido alguém dizer que mulher sofre pra ficar bonita. A madrinha mentira, mas essa verdade ela sentia arder na pele. 

Quando à noite ela se deitou, Justin Biebers congelados em pôsteres assistiram-na se cobrir com os lençóis. Colados com fita crepe nas portas de seus armários e nas paredes cor de rosa do quarto, seus ídolos passaram a noite a contemplá-la com seus olhares de vidro, mas nenhum deles soube que ela sentiu o tecido do lençol escorrer liso em sua perna, mais perto de sua derme do que nunca. No dia seguinte, notou em sua pele sutis rachaduras, perceptíveis apenas aos olhos das mulheres que aprenderam a procurar em si defeitos ao invés de qualidades. Ocorreu-lhe que, sem as árvores da mata ciliar, as margens de um rio cedem à erosão. E então ela passou hidratante, feliz porque podia usar uma saia (não muito) acima dos joelhos.

Repetiria o procedimento muitas e muitas vezes. Sua perna de mulher estava lisa e macia, não como são as pernas de humanos adultos, mas como um dia haviam sido suas pernas de criança: ela, enfim, tornara-se mulher.



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