terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Para homens, sobre o aborto

por Letícia Bahia


Escrevi outro dia um texto, o Tutorial do homem feminista, em que disse que aborto não é assunto de homem. Penso que a decisão de interromper ou não uma gravidez deve caber inteiramente à gestante, mas escrevo esse texto para conversar sobre aborto com quem tiver interesse em discutir o tema. Menstruação e câncer de mama também são assuntos de mulher, mas isso não significa que nós não possamos conversar com homens sobre isso, como apontaram alguns amigos que leram o Tutorial.

A primeira coisa a dizer é que ninguém é a favor do aborto. Eu não sou a favor do aborto. Sou a favor de Educação para todos, das cotas universitárias para negros, do fim do voto obrigatório. Estas são coisas que eu desejo que aconteçam. Eu não desejo que abortos aconteçam: apenas não quero impedir mulheres que queiram abortar de levar sua decisão a cabo. Quem discute a partir desse viés está preso à parte rasa do debate. A questão é a legalização do aborto. Se eu sou pessoalmente contra, se minha religião proíbe, se eu abortaria ou não, isso pouco importa. Eu não preciso gostar de carros para defender o direito de as pessoas tirarem carta de motorista. Gosto de tomar cerveja, mas ainda que não gostasse, defenderia o direito de uma pessoa adulta optar por ingerir as substâncias que desejar. Você poderá rebater: "mas, Letícia, você acha que as pessoas devem poder dirigir embriagadas? Acredita que o sujeito deva poder fazer escolhas livremente mesmo quando isso coloca em risco a vida de outros?". Não, eu não acho. Aliás, esse deve ser exatamente o limite das liberdades individuais, e aí chegamos no ponto em que a questão do aborto atinge seu pico de delicadeza. Então vamos prosseguir com calma, que delicadeza e pressa na mesma equação costumam resultar em cacos e sangue.

Sou favorável à realização de aborto sempre que essa for a decisão da gestante, em qualquer momento da gravidez. Contudo, neste texto quero tratar da interrupção voluntária até a décima segunda semana*, situação em o próprio Conselho Federal de Medicina é favorável à possibilidade de aborto. A partir deste momento, duas coisas tornam a coisa mais complicada. Número um: passa a haver risco de morte para a mãe. Penso que cada um deve ser o senhor de seu próprio corpo, tendo inclusive o direito de submetê-lo a riscos como usar drogas, praticar esportes radicais, dirigir no trânsito de São Paulo ou submeter-se a um aborto. Mas não vejo problema em a classe médica não querer implicar-se no risco de morte de outrem. Estão os médicos em seu direito, penso eu. 

Mas o cume da delicadeza está no segundo aspecto da décima segunda semana: até então, o embrião não desenvolveu seu sistema nervoso central. É somente a partir deste ponto que ele começa a pensar e sentir. Antes disso o aborto  não representa nenhum tipo de sofrimento para o feto. Pode parecer cruel, mas até a décima segunda semana um aborto é para o feto como a serra elétrica é para uma árvore: doloroso para quem vê, mas irrelevante para quem experiencia. Uma árvore e um feto são igualmente desprovidos de sistema nervoso central, estrutura na qual têm lugar todas os processos químicos que produzem tudo o que chamamos de afeto, sentimento, cognição, sensação, consciência, etc.

"Letícia, mas um embrião carrega toda a potencialidade da vida humana!". É delicado lidar com o porvir. Esse é justamente o ponto em que os homens sentem-se autorizados a opinar sobre o aborto, porque quando morre um feto, parte com ele também um pai que, se não chegou a existir de fato, pode ter vivido a mais plena paternidade enquanto desejo. Lamento por esses pais - e avós, tios, primos e, sobretudo, pela mãe - que quiseram ser e não foram. Lidar com desejos frustrados é realmente doído. Mas o que eu tenho a dizer a estas pessoas, e que me dói dizer porque sei que deve doer ouvir, é o seguinte: "você nunca foi pai porque o fruto do aborto não é mais do que uma estrutura orgânica incapaz de amá-lo ou de receber o seu amor. A criança por quem você chora não existe senão como desejo em um futuro que só existe dentro de você". 

Posso imaginar um paciente ouvindo essas palavras e quebrando os vasos do meu consultório. Às vezes, quando sentimos que a dor é maior do que nós, precisamos que ela transborde e doa também fora de nossos corpos esfacelados. Mas não adianta, porque o lugar de existência do desejo é dentro de nós, e é lá que mais cedo ou mais tarde teremos que realizar a dolorosa digestão da frustração. O pai imaginário - e avós, tios, primos e, sobretudo, a mãe imaginária - existem dentro de cada um. Isto é tão verdade que posso eu, cá enquanto escrevo essas linhas, inventar um pouco de contorno para a mãe que, acredito, um dia serei. Não é preciso que haja gravidez para que a gente construa os pais e mães que sonhamos ser - e que eventualmente teremos que aprender a desconstruir. É assim com casais que não conseguem ter filhos: lida-se com a dor de um porvir que nunca será, com o choro da madrugada que nunca se ouviu, com um diploma de profissão inexistente não pendurado na parede. É das piores dores do mundo essa saudade do que nunca foi. 

O que podemos dizer ou fazer diante de alguém com tamanha dor? Quase nada. Se o desejo é uma produção nossa, também é nossa a responsabilidade de lidar com as dores que dele advenham. Não se pode arrancar a dor do outro. Às vezes a única coisa a fazer é estar junto. E aí retornamos ao ponto inicial: a decisão do aborto cabe tão somente à mulher. 

Não é justo sacrificar mulheres para que não sofram as pessoas ao redor. Não. Se um aborto frustra desejos e isso é doloroso, vamos construir espaços em que possamos lidar com humanidade com essa dor. Não é aceitável que se retire de alguém a soberania de seu corpo sob o argumento de que "eu, homem, tenho direito de não sofrer", ou "eu tenho direito de me tornar o pai que idealizei". Ninguém tem direito a isso. Não sofrer não é direito, é luta cotidiana. Luta-se árdua e diariamente para que que as utopias dos desejos - nossas construções - tornem-se um pouquinho reais, e para que a frustração nos atinja em uma medida não maior do que a que podemos suportar. Não, as mulheres não estão aí para que o mundo festeje o milagre da vida crescendo em seu ventre ou para tornar real a criança que outras pessoas desejam. Nós pertencemos a nós mesmas e vamos continuar morrendo enquanto isso não for compreendido. 

A tragédia final do aborto não são bebês assassinados que existiram apenas na cabeça de gente que, como todo mundo, sonha. O choro que se ouve não é o dos fetos que nada sentiram e nunca choraram, é o choro inconsolável de mulheres como Severina, que deu à luz o filho anencéfalo que onze homens do Supremo Tribunal Federal a fizeram parir. É o choro de Jandira Magdalena dos Santos, que morreu ao realizar um aborto clandestino no Rio de Janeiro. Quem chora são as minhas amigas que já realizaram o aborto que teria sido menos doloroso se não fosse, além de aborto, um crime. 

Por essas mulheres e também por mim eu repito: quem decide é quem aborta. Eu estou aberta a conversar sobre o assunto com qualquer um, independente do gênero, mas eu não estou disposta a conceder a ninguém essa decisão que por direito é da gestante.   


* sobre o aborto após o primeiro trimestre gestacional, recomendo o documentário After Tiller. Aqui tem uma palinha dele. Pegue a caixa de lenços. 
** curta Reflexões de uma lagarta no Facebook   

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